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ENSAIO SOBRE ORIGEM DA RACIONALIDADE VIGENTE

17/08/2023
Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a forma do nosso corpo, esquecer os caminhos que nos levam sempre aos mesmos lugares...

 

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"Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a forma do nosso corpo, esquecer os caminhos que nos levam sempre aos mesmos lugares; é o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos”.

Fernando Pessoa

Demerval Saviani em seu livro “Educação Brasileira” - Estrutura e Sistema - ao responder à pergunta “Existe Sistema Educacional no Brasil” aponta as origens de um problema considerando:

“A Educação se destina à promoção do homem... A possibilidade de uma sociedade assumir globalmente um propósito deliberado e coerente de desenvolvimento, afigura-se um problema, em grande parte, dependente da questão educacional. A ênfase que se vem dando ultimamente à educação como um instrumento para o desenvolvimento exprime, embora de maneira difusa, e frequentemente unilateral, essa dependência.

Entretanto, agarrar-se à educação como uma tábua de salvação para os problemas nacionais representaria uma posição ingênua, destituída de criticidade. Isto porque, se por um lado, ela se constitui um possível ponto de rompimento do chamado “círculo vicioso” do subdesenvolvimento, por outro lado, ela própria se apresenta como que encerrada dentro do mesmo “círculo”. Daí as deficiências do processo educacional, constantemente apontadas, raramente sanadas e frequentemente agravadas. Como superar essas deficiências?”

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Nesse ensaio busco resposta a essa pergunta propondo-me uma reflexão sobre origens e conservação desse “círculo vicioso” identificando suas origens na materialidade histórica do pensar nossas ações no mundo. A simplicidade das considerações não pretende resumir ou desqualificar o problema e sim abrir espaço para o contato com a magnitude de seus desdobramentos. Esse exercício reflexivo é a ferramenta que orienta a proposta da Escola Interativa e sem ela, não ousaríamos propor qualquer mudança ao que hoje se tornou comum chamar “sistema educacional brasileiro”.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O ser humano sobreviveu às adversidades da natureza, apesar da fragilidade de seu organismo, por ter a capacidade de socializar-se e transmitir cada uma de suas experiências às gerações posteriores que as aperfeiçoavam e criavam sobre o já criado. Nesse sentido, podemos afirmar que o estágio a que chegou o mundo atual é devedor do homem das cavernas e de sua capacidade de viver em bando. No entanto, a relação com o outro, que possibilitou a continuidade da existência humana, passa agora a ser uma ameaça no seu aspecto individual. O ser humano teme, agride e compete com o outro de sua própria espécie. A interação social dá lugar à tensão social - não só entre classes, mas entre elementos de uma mesma classe social.

Vivemos uma “crise” caracterizada não somente pela existência objetiva dessa situação problemática, mas pelo fato inédito de percebermos que o sistema que gera a crise não consegue resolvê-la dentro de sua lógica. Assumir a compreensão dessa realidade nos obriga a debruçar sobre nosso cotidiano localizando em nosso tempo histórico - concebido na dimensão de processo que forja subjetividades - padrões civilizatórios ou, dito de outra forma, a conservação de “modos de vida” - fatos que nos ajudem a entender a situação em que nos encontramos. Vejamos:

O que sustenta a maior parte da superestrutura que ordena nossas vidas é uma forma de pensar o mundo que chamamos de racionalidade. A superestrutura é um conjunto de normas (explícitas ou implícitas) e instituições que regulam o comportamento dos indivíduos em todos os âmbitos das relações interpessoais - seja ele econômico, político, educacional, religioso, social, etc. Já a racionalidade se traduz em um aparato lógico e retórico que apresenta formas de explicação sobre a realidade circundante, bem como um conjunto de práticas de convencimento e regulação.

Buscando no passado a origem dessas formas de explicação e regulação, acabamos nos atendo a dois momentos inaugurais: o apogeu da Grécia Clássica ( por volta do século V a.C.) e o período conhecido como Iluminismo ( compreendido entre os séculos XVII e XVIII). Primeiro faremos algumas considerações sobre o início de uma racionalidade entre os gregos da antiguidade. Vejamos:

Até o início do período Clássico a Grécia era formada por um grande grupo de cidades estado (polis) que eram o centro vital de pequenas sociedades que mantinham grande autonomia cultural, religiosa e mesmo linguística. A partir de 490 a. C. os gregos sofrem ameaças do império persa que começa a se constituir uma força dominadora na região. Nesse período, os gregos dominavam o intenso comércio que ocorria no Mar Mediterrâneo, ligando produtores e consumidores de produtos provenientes do Egito, de colônias do Oriente Médio, das ilhas da Itália e de outros portos do Mar Negro.

Diante do inimigo externo, as polis passam a se articular para fazer frente ao desafio de conter o avanço dos persas. As cidades estado mais proeminentes na ocasião eram Esparta e Atenas e são elas que capitaneiam ligas de apoio e interesses mútuos que otimizam ainda mais o comércio e o intercâmbio cultural entre os cidadãos. Precisamente nesse contexto surgem as principais criações que condicionam a vida do ocidente de então: a democracia ateniense e a filosofia clássica.

A origem da filosofia clássica costuma-se atribuir aos ensinamentos de Sócrates (469-399 a.C.), mas foi com Platão (428-348 a.C.) que essa tradição se consolidou e que traz impactos até hoje. Foi Platão quem formalizou e sistematizou os ensinamentos, tanto de Sócrates quanto seus próprios, nos famosos Diálogos. A rigor, o que Platão faz é apresentar uma forma de pensar o mundo que não fosse baseada nos mitos. As consequências dessa forma de pensar o mundo têm decorrências em todos os campos da vida social da época - da ética e do direito até a matemática e as ciências.

A operação essencial da perspectiva platônica é a dicotomização do mundo. Baseada na noção de “mundo das ideias”, Platão propõe um corte conceitual para solucionar o problema da não permanência - que por tanto tempo atormentou os pensadores antes dele. Para Platão, tudo que “é”, é, e não pode deixar de ser. O que muda, o que deixa de ser como era, é porque na verdade não existia - seria apenas uma ilusão. Curioso é que, para explicar isso para a população da sua época o filósofo foi obrigado a recorrer a um mito: o mito da caverna.

Ou seja, quando Platão define que um tronco de árvore que apodrece no chão, no meio da mata é, na verdade, uma ilusão dos nossos sentidos, que não tem consequência para o universo, ele está dizendo que o concreto mundo das contingências é um fenômeno desprezível. Para se entender de fato o mundo é necessário recorrer ao que existe de verdade, que no fundo são apenas ideias “puras e perfeitas”. Reside aí o fato de Platão utilizar recorrentemente os exemplos da matemática para ilustrar seu pensamento, porquanto na matemática as formas puras da geometria é que existem - por exemplo, a figura de um quadrado, enquanto a caixa de madeira produzida para guardar trigo não é “quadrada” por ser uma cópia imperfeita e contingente. Essa forma de pensar produz uma inevitável cisão no mundo e leva a um forçoso desprezo para os sentidos e para o corpo.

Não à toa, o catolicismo original mergulhou nessa perspectiva que se ajustava prontamente com seus ideais de céu (ideal, permanente, absoluto) e inferno (ilusório, contingente, profano). É importante notar como uma estratégia lógica, filosófica, produz consequências no regramento moral e no ordenamento econômico de uma sociedade. Na verdade, a assunção dessa forma de pensar ocorre em paralelo com a construção e definição de uma superestrutura, pois são os dois fenômenos originados da mesma força elementar: a luta pela produção e reprodução da vida.

Quero dizer com isso que a operação mental condicionada pelo platonismo permite facilmente dicotomizar e posicionar, de maneira hierárquica as coisas (e as pessoas) no mundo. O próprio Platão havia feito isso quando falou de política, definindo que o governo deve ser comandado pelo rei-filósofo - aquele que desde o nascimento (já que a alma é que existe, enquanto o corpo é apenas um receptáculo) está imbuído da missão de governar seguindo as leis racionais, conhecendo e operando no mundo das ideias.

Não são todas as pessoas que alcançariam a condição de rei-filósofo. Portanto, existem pessoas destinadas a uma função “nobre” na sociedade e outras, não. Além de limitar a visão sobre o que é “certo” (mundo da ideia) e “errado” (mundo concreto), essa racionalidade provoca a identificação de classes de pessoas e lugares sociais autorizados a serem ocupados. Traduz-se como pensamento elitista e conservador, sendo que o próprio Platão rechaçava a democracia, para ele, o “governo dos fracos”.

Passando agora ao outro momento histórico, identificado na origem de uma racionalidade perversa, voltamos o olhar para o início da era contemporânea que culmina com a Revolução Francesa (1789). Observando o contexto, reconhecemos que o desenvolvimento das forças produtivas na época reflete os avanços (sociais, econômicos e científicos) conquistados no período pós feudalismo. É o período marcado pelas revoluções industriais, as reformas religiosas e o renascimento científico e cultural da Europa. Sem dúvida, a emergência de uma classe social específica nesse momento histórico produz as condições concretas para o surgimento de uma nova hegemonia geopolítica globalizada.

A burguesia*, nos seus séculos de existência como uma casta dentro do feudalismo ou como classe dominante no capitalismo, construiu - a partir de sua práxis - uma racionalidade fundamentadora de sua presença e ação no mundo, a partir da qual se erigiram determinadas formas de pensar a realidade, de teorizar sobre ela e de se relacionar concretamente com a natureza e com o outro.

* (burguesia aqui é concebida como uma classe social histórica que protagonizou a derrocada do mundo feudal e nobiliário, impondo sua forma de economia e conquistando a hegemonia na sociedade mundial. Assim, ao uso do adjetivo “burguês” ou “burguesa” estou vinculando o substantivo à racionalidade construída por esta classe, sem que isso indique, à priori, um juízo de valor e, muito menos, uma simplificação das intrincadas relações de classe no mundo atual).

Ao determinar um novo processo civilizatório, essa classe social passou a dirigir o mundo não só sob aspectos econômicos, social e político, mas também, e fundamentalmente, espiritual e cultural. Com o novo modo de produção (o capitalismo) firmou-se também uma nova ciência, uma nova filosofia, uma nova axiologia, uma nova ontologia e novos eixos que mediariam o contato do ser humano com a natureza e com os demais seres humanos.

O eixo central da racionalidade burguesa, que é o princípio determinante das relações entre os seres humanos e entre estes e a natureza, vigente na atualidade, é a troca. Tudo deve ser subsumido a esse eixo fundamental. Contudo, o tipo de troca que funciona como eixo dessa racionalidade não é uma troca solidária e complementária, mas a troca interesseira e individualista, cujo fim não é a satisfação dos dois polos envolvidos nela, mas a obtenção de vantagens para um dos lados. Chamarei esse princípio de troca competitiva.

A troca competitiva concedeu um outro sentido às relações de troca, que possuíam, anteriormente, a característica da complementação, tornando-as uma fonte de acumulação de riqueza. O mercado passou a ser o conceito que designa as relações fundamentadas na troca competitiva mediadas pelo dinheiro, e é sob o seu prisma que devem ser considerados o desenvolvimento da sociedade capitalista e o estabelecimento de novas relações entre os seres humanos. Estes passam a ser vistos como indivíduos isolados que, lançados ao convívio social, medeiam seu contato com o mundo (humano e natural) pela relação da troca competitiva.

O estabelecimento desse princípio se deu por uma praxis concreta de manutenção da existência do ser do ser humano burguês pois, inicialmente, ele tinha no mercantilismo a fonte de sua sobrevivência, como indivíduo e como casta. Se disso dependia a sua existência, é possível dizer que o ser do ser humano burguês era sustentado por essa prática. Sem ela, o burguês morreria (tornar-se-ia não-ser), donde a conclusão de que a prática mercantil compunha a essência da burguesia. Não é difícil, portanto, entender por que a lógica interna da prática mercantilista se tornou um princípio axial da racionalidade burguesa que se estenderia a toda relação com o mundo externo, pois ela era nada mais do que a manifestação de sua essência.

Em torno do eixo fundamental da troca competitiva, erigiu-se a racionalidade hoje hegemônica, fazendo com que todos os fenômenos do mundo cotidiano sejam compreendidos, em sua essência, como componentes de uma estrutura lógica mercantilista. A troca competitiva (que fundamenta o mercado) deixou de ser um resultado de relações entre pessoas para ser um princípio monológico com o mesmo status da gravitação na física newtoniana. É quase impossível pensar fora desse referencial fundamental, trabalho ainda mais espinhoso é substitui-lo por outro. Não se trata de algo impossível de se conceber, e sim de se realizar.

A ciência e a tecnologia contemporâneas (ou o uso que delas é feito) também foram subsumidas a esse princípio racional fundamentador, e por isso elas aparecem como atividades que visam à exploração destrutiva da natureza, a desumanização do ser humano e o “esquecimento do Ser”. Quando também enraizadas nessa base fundamental, a economia, a sociologia, a “politicologia”e os demais saberes voltados à compreensão das relações humanas e à elaboração de propostas em suas respectivas áreas, não conseguem romper os limites que demarcam a racionalidade do mercado - só são capazes de elaborar modificações internas, dentro da ordem, visando o aumento da performance do sistema ou o seu desenvolvimento dito “não - selvagem”.

Em momentos em que a crise atinge a própria racionalidade, esses saberes ficam sem perspectivas para propor alternativas à humanidade e acabam apenas manifestando-se a respeito de circunstâncias locais, elaborando projetos paliativos que só minimizam os efeitos funestos do atual desenvolvimento do mercado mundial.

Para poderem retomar a sua capacidade de compreender e de elaborar soluções para os problemas postos para elas, as chamadas ciências humanas precisam fundar-se em uma outra racionalidade - o que já vem ocorrendo, de forma latente, em trabalhos de muitos intelectuais.

Entendamos que:

*a troca competitiva tem como meta final o ganho. É o retorno que define esse tipo de troca. Não há relação de complementaridade como o termo troca pode sugerir. O retorno, em uma relação de troca competitiva, sai sempre de um dos polos dessa relação, ou seja, o que eu ganho é o que sai do outro. Colocando-se essa troca como princípio fundante das relações humanas, estabelecem-se, automaticamente, a concentração de riquezas e a exploração.

*a relação de exploração é decorrente da hipostasia do mercado, ou seja, do fato de um tipo determinado de relação humana ter se tornado um princípio absoluto, autônomo e com existência própria. Com efeito, a categoria “troca” (fundamento do mercado) é proveniente de uma dada relação entre os seres humanos e depende dela para ter sentido (tanto lógico como ontológico); mas a racionalidade burguesa a coloca como “causa primeira” (incausada) e “motor móvel” das relações humanas.

*a exploração ocorre porque as ações guiadas pela racionalidade do mercado hipostasiado tem, ao fim e ao cabo, o fito de tirar (explorar) tudo o que for possível do outro polo com o qual se relaciona, seja este um ser humano ou a natureza. A racionalidade burguesa traz, em sua essência, uma dinâmica progressiva de exploração por tender à otimização dos resultados de suas relações.

Isto posto, façamos um exercício de aplicação dessas reflexões buscando encontrá-las ou não na nossa maneira de estar no mundo.

ÉTICA

A ética burguesa é a ética do mercado. Tudo o que serve à otimização da troca é bom e justo, portanto virtuoso. Tudo o que atenta contra a livre competição interesseira é mau e injusto e deve ser combatido por ser um vício.

ONTOLOGIA

A ontologia burguesa é a que atribui essência (esse=ser; ou seja, considera como ser) apenas aquele que possui. Quem não tem nada é não ser. Obviamente, só pode pertencer ao âmbito de uma relação de troca quem tem algo a trocar, ainda que esse algo seja apenas sua força de trabalho. Quem não possui o que trocar não tem o mínimo direito de se beneficiar com algo, pois simplesmente não existe no horizonte da troca competitiva. O único espaço ontologicamente reconhecido é o da posse. Por isso investimentos voltados para os excluídos são considerados gastos desnecessários e que podem ser cortados, ao mesmo tempo em que se negam direitos básicos a quem não pode pagar por eles, pois a morte de quem não é não é morte, mas plenificação de sua condição de não-ser. Incômoda mesmo (pois paradoxal) é a presença angustiante desse não-ser aos nossos sentidos, pelas ruas, morros, janelas dos carros, reportagens especiais, etc. Nenhuma manifestação ou fenômeno do mundo humano, ou mesmo da natureza, são considerados seres se deles não se puder obter algo que possa ser trocado.

HUMANISMO

O humanismo burguês submete o ser humano aos princípios de sua capacidade de produção e de inserção no mercado. Inúmeros relatórios sobre direitos humanos divulgados por organismos internacionais referem-se à violação dos direitos humanos como um obstáculo à capacidade produtiva dos indivíduos afetados, como se esse fosse o único argumento capaz de convencer empresas e estados sobre a necessidade de se respeitar os direitos da pessoa humana. Quando nos falta uma outra racionalidade, vemos o mundo sob o prisma da racionalidade burguesa, que molda os fenômenos de acordo com seu eixo central e com os princípios circundantes dele decorrentes, e nossa ação cotidiana acaba reproduzindo todas as relações dela originárias.

Assim se pensa o mundo, assim se desenvolvem as ciências, se aplica a tecnologia, se elaboram políticas públicas, se impõem planos econômicos. Assim se relacionam homens e mulheres entre si. Assim se ora e se reza. E assim, justamente assim, vai-se destruindo toda a humanidade. Entre os seres humanos, os efeitos dessa racionalidade criam um clima constante de tensão. A tensão é uma característica predominante na sociedade capitalista.

QUESTÕES FILOSÓFICAS

As duas principais crises que abalam a humanidade neste limiar de século XXI fazem referência à crise da natureza e à crise das relações humanas. A amplitude e a gravidade dessas crises fazem com que elas se imponham como os principais problemas sobre os quais deve se debruçar a filosofia* se ela quiser manter o seu papel histórico de dar inteligibilidade ao mundo, para além da simples manifestação imediata dos fenômenos.

*A compreensão de filosofia aqui adotada é de que ela é uma forma de saber que tem como objeto todo e qualquer fenômeno que se apresente como problema.

A problematicidade dos fenômenos surge quando estes se apresentam como um desafio à racionalidade que precisa ser enfrentado, a fim de que a humanidade não perca a principal característica que a possibilita existir no mundo, livre da perplexidade e dos medos, e mantenha seu poder de transformação da realidade: a capacidade de entender o mundo.

Toda a história da filosofia pode ser compreendida como a tentativa, histórica e socialmente situada, de construir racionalidades explicativas dos fenômenos mundanos em diversos de seus aspectos; político, econômico, social, cultural, artístico, linguístico, científico, moral, espiritual, etc. recorrendo-se para isso, à construção de uma ontologia, de uma axiologia, de uma gnosiologia, de uma fenomenologia, etc., a partir das quais as manifestações particulares do mundo seriam reinterpretadas e tornadas inteligíveis.

A filosofia deve, pois, voltar-se para o mundo e dele extrair o seu objeto. Por isso pode-se dizer que a filosofia é uma reconstrução racional do mundo em diversos de seus aspectos e não uma atividade puramente conceitual.

É na sua atitude frente aos problemas de cada época e na tentativa de compreender a realidade em uma unidade de sentido que não significa, necessariamente, uma estrutura explicativa única, que a filosofia ganha importância e necessidade. Citando Hegel:

“Quando da vida do homem desaparece o poder da união e as oposições perderam a sua viva relação e interação e ao mesmo tempo obtiveram a autonomia, surge, então, a necessidade da filosofia.”

Quando o problema perde sua condição de ser resolvido dentro de uma determinada racionalidade; quando ele conflita com os eixos fundamentais que dão unidade a determinada concepção de mundo; quando, enfim, as respostas possíveis dentro de um determinado logos sequer tangenciam alguma solução ao problema estabelecido emergem, então, as crises. É nesse momento que a filosofia mostra sua maior importância e desafia o intelecto humano de forma muito mais exigente.

Vivemos um desses momentos de crise, gerada por fenômenos problemáticos que desafiam o pensamento filosófico e exigem dele uma especial atenção. O objetivo não é estarrecer o leitor nem propagar o pessimismo, mas fincar pilares de uma nova racionalidade que possa superar as crises que estamos vivendo.

REFLEXÕES PROPOSITIVAS VISANDO À CONSTRUÇÃO DE UMA NOVA RACIONALIDADE COOPERAÇÃO - UM PRINCÍPIO

A cooperação é um princípio enquanto uma regra eficaz na tarefa de orientação permanente de todas as nossas iniciativas de ampliação do campo das possibilidades para o indivíduo e para o coletivo.

A cooperação é um princípio enquanto um indicativo de qual deve ser o primeiro passo quando buscamos, em estado de desespero, as alternativas à fome, à miséria, ou a todo tipo de sofrimento humano.

O princípio da cooperação responde ao desafio da “re-singularização das finalidades da atividade humana” ou “da reorientação radical dos meios e sobretudo das finalidades da produção”.

Mais do que uma ação limitada ao campo da ação política a cooperação é uma proposta de ação em que a racionalidade buscada se define simultaneamente com a fundação de uma ética.

A cooperação emerge como síntese de dois movimentos: o da razão ao se debruçar sobre nossa realidade produzindo conceitos, e o da emoção acolhendo-nos e forjando uma utopia.

O ato de cooperar pressupõe o árduo trabalho da razão e o sopro leve do espírito apaixonado e empenhado com uma utopia.

Em tempos de tanta violência e miséria, em meio a tanta exclusão e morte, o princípio da prudência assume o posto de regra máxima na orientação de nossas condutas. Boaventura de Sousa Santos já propôs “uma ciência prudente para uma vida decente”.

Assumimos a prudência como regra para quem cuida de si e dos outros. Os instrumentos práticos necessários ao exercício da prudência nós só podemos obter do uso de nossa racionalidade.

A dialética do simples e do complicado está presente no princípio da cooperação em toda a sua intensidade, rendendo dinamismo ao pensar e ao agir. Poderíamos dizer “é tão simples, basta abrir-se à cooperação”. Porém é tão complicado que exige um árduo trabalho do pensamento e uma prudência permanente em cada gesto em nossa conduta.

A sustentação da vida resulta de um movimento permanente entre homens e mulheres em permanente estado de encontro em que as ações entre todos resulta em algo inédito.

É impossível criar sem cooperar. E a vida perde a graça entre aqueles que se encontram envolvidos na competitividade do cotidiano: os rostos se tornam amargos, a pele enrijece à espreita de todo o susto, os corpos já não dançam mais. Quem vive competindo já perdeu todos os “mapas das festas”. No exercício de criação junto com o outro recuperamos em nossas práticas os gestos do afeto e da carícia.

Para a Cultura da Paz

Adal