A escola, como espaço artificial de convivência, é amplamente favorável ao exercício de relações participativas. A participação, enquanto direito de toda pessoa, se viabiliza por mecanismos e instrumentos disponibilizados a todos garantindo, a qualquer do coletivo, respeito e aceitação quando deles faz uso. Essas considerações não podem ser descuidadas sob o risco de resvalar para relações comprometidas com o poder, o mando e a exploração do outro, travestidas em ações pedagógicas.
Nesse contexto importa analisar os currículos, enquanto ferramentas fundamentais do trabalho pedagógico que, orientados por concepções excessivamente técnicas, jamais questionadas, têm um cunho de artificialidade ao desconsiderar, de forma ostensiva, o conteúdo de vida do aluno - por vida entendemos o que a pessoa experimenta também fora da escola, no âmbito de suas relações parentais, no contexto cultural em que se insere. Essa perspectiva pedagógica, de ética questionável, reforça estigmas frequentes como: “só se aprende na escola”, “só tem valor o que a escola ensina”, “só quem sabe é o professor”.
Relevando o caráter ideológico desse paradigma, cabe não perder de vista que a ruptura entre o mundo da vida e o mundo escolar traz, como consequência, uma alienação, uma fragmentação do significado das experiências mais caras ao aluno e, ao desqualificar suas relações com seus familiares, amigos e parentes, presentes em suas primeiras sensações de estar no mundo, destitui sua pessoa de valores fundamentais. Segundo Dewey, “o que nutrição e reprodução são para a vida fisiológica, a educação é para a vida social” (DEWEY, 2008).
Ao orientar as relações escolares para aprendizagem de currículos arbitrários e estanques, desconhecendo e desqualificando visceralmente a pessoa do aluno e sua realidade existencial, corre-se o risco de torná-lo desconhecido de si próprio e como tal, paute suas ações no mundo pelo que lhe é dito e exigido por outros. Nessa relação artificial com o mundo, é muito provável que ele não consiga participar desse mundo como um cidadão produtivo e feliz. Freire apresenta uma significativa caricatura para essa “metodologia de ensino”:
Nela, o educador aparece como seu indiscutível agente, como o seu real sujeito, cuja tarefa indeclinável é “encher” os educandos dos conteúdos de sua narração. Conteúdos que são retalhos da realidade desconectados da totalidade em que se engendram e em cuja visão ganhariam significação. A palavra, nestas dissertações, se esvazia da dimensão concreta que devia ter ou se transforma em palavra oca, em verbosidade alienada e alienante. Daí que seja mais som sem significação e, assim, melhor seria não dizê-la (FREIRE, 1987, p.33, (grifo nosso)
Abandonar o espaço viciado de aprendizagens de currículos artificiais exige repensar estrutura e organização do espaço escola considerando nelas as pessoas que sustentam, realizam e cumprem as funções escolares de forma emancipatória. Essa perspectiva pode ser entendida pela proposição de currículo aberto, cuja construção prescinde da presença incondicional daqueles que juntos aprendem. A questão da ética, revigorada por essa maneira de orientar o trabalho escolar, torna-se evidente com a impossibilidade de que ela se viabilize com descarte ou ausência de qualquer dos seus componentes.
Isto posto, carecem de sentido, justificativas históricas e políticas sociais que dão ganho de causa à prévia organização de currículos sem que lhe seja imputado seu caráter arbitrário, visivelmente autoritário e discriminatório. Na contrapartida do funcionamento do espaço escolar para participantes ativamente organizados e institucionalmente livres na aprendizagem criativa, recompõem-se o interesse e o comprometimento com as ações aí realizadas, multiplicando oportunidades para a experiência interpessoal orientada pela moral coletiva e condutas sociais responsáveis.
A Escola Interativa entende que a melhor maneira de aprender é no grupo formado por alunos que tenham interesses comuns para a troca de suas experiências e saberes. A valorização das individualidades em torno de interesses comuns possibilita ao grupo manter conversações interdependentes e complementares que alimentam a produção de informações e dados, elementos necessários e indispensáveis para a construção de conhecimento. Nesses encontros de conversa, saberes que expressam a realidade da vida dos conversadores, são pontes de efetiva comunicação que sustentam as relações do grupo dando-lhe uma configuração que garante sua dinâmica enquanto dure o interesse pelo trabalho - como lembra o psicólogo H. Wallon, “na criança enfrentam-se e se implicam mutuamente fatores de origem biológica e social” (GRATIOTALFANDÉRY, 2010, p. 47).
Os conteúdos, dos currículos abertos, emergem dessas conversas e da necessidade de maior entendimento sobre os assuntos levantados ao longo de interações - com os objetos, o ambiente e o outro. O atendimento a essas demandas estimula pesquisas, leituras, encontros com professores e demais atividades que possam atendê-las. Este ambiente define a comunidade de aprendizagem sendo nela, que os professores se encaixam, disponibilizando Oficinas de trabalho orientadas para o atendimento às necessidades dos grupos.
O caráter ético dessa dinâmica, sustentada por relações, repousa na necessidade de desenvolver a habilidade de construção de regras para bem se conduzir nesse espaço, evidenciando a natureza consensual dessa habilidade. Concebendo a moral como coordenações consensuais de conduta, temos no exercício de construção dessa moral aquela que denominamos moral solidária, porquanto ela surja como produto desse exercício. Segundo Maturana, a “história de coordenações consensuais de conduta [...] exige uma convivência constituída na operacionalidade da aceitação mútua” (1998, p. 24).
Entendemos que desenvolvendo essa habilidade ampliam-se os espaços de relações solidárias que terminam por definir uma cultura que, ao incluir o outro, tornasse ética. É nesse espaço que se constrói o conhecimento que, resultando da relação entre os saberes individuais, faz-se coletivo e socialmente relevante.
Currículos abertos têm como fundamento espaços de interações linguísticas que, mantendo o grupo em estreito relacionamento, exercita-o na aceitação e respeito pela diversidade que o constitui. Nesse exercício vive-se a experiência de liberdade, tão cara à construção da pessoa, porquanto o conversar flui livre do controle ou de uma ordenação pré-estabelecida.
O conhecimento que nasce dessa relação é de todos pois resulta da efetiva presença de todos no conversar. Decorre desse fato que os participantes não se apropriam de um conhecimento, pois o que é construído na linguagem, em espaços de liberdade e ação participativa, já lhes pertence. Considere-se ainda que possuir ou ter conhecimento não é atributo de quem possa tê-lo produzido, ou participado de sua construção, mas sim de quem faz uso dele. Nesse sentido, mudanças de conduta podem ser consideradas evidências de aprendizado.
A questão do uso objetiva o caráter ético dessa produção, porquanto adentre o espaço de ações alinhadas com o que foi aprendido. As contribuições individuais, que a maneira solidária de aprender disponibiliza para o grupo, ampliam seu repertório de possibilidades para ajustes que cada participante pode fazer, relativamente às demandas do meio, considerando-se suas disponibilidades afetivas e emocionais.
Essa maneira de aprender, valorizando a convivência, contribui para a formação de mentes flexíveis, dando plasticidade ao pensar dos que assim se relacionam, ampliando o campo operatório de seus participantes pela valorização da habilidade de trabalhar em rede. Diferentes categorias para o pensar resultam desse exercício de inclusão, tornando-se possíveis, enquanto ações.
Os benefícios da maneira humana de aprender, exercitada nas relações cotidianas dos trabalhos pedagógicos, têm grande probabilidade de se fazerem presentes em outros espaços da vida do aluno, o que nos permite afirmar que a paz que desejamos necessita desses espaços para se fazer real.
Vivamos a paz.
Com afeto, Adal
Referências DEWEY, J. Democracy and Education, 2008. Gutenberg Project.
Disponível em:
https://www.gutenberg.org/files/852/852-h/852-h.htm#link2HCH0001
Acesso em 01/02/2017. FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra. 1987. 17ª ed. GRATIOT-ALFANDÉRY, Hélène. Henri Wallon. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010. MATURANA, H. Emoções e linguagem na educação e na política. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998